Esports são esportes? O que dizem especialistas e estudos

O debate sobre esportes eletrônicos serem esportes ou não voltou à pauta após as declarações da ministra do Esporte, Ana Moser, de não considerar esports como esportes e, por isso, não prever investimento público no mercado de competições de games. O assunto é complexo e não há consenso sobre a conceituação de esports, embora seja possível equipará-los com os esportes tradicionais, segundo especialistas e estudos consultados pelo ge.

Profissionais que trabalham com esports tendem a defendê-los como esportes, enquanto estudiosos do Esporte consideram a classificação complexa demais para responderem somente “sim” ou “não”, já que há diferentes vertentes de conceituação sobre o que são esportes. Entra nessa discussão ainda o fato de que os jogos eletrônicos são propriedades intelectuais de empresas, ou seja, têm donos, ao contrário dos esportes tradicionais.

Esports são esportes?

 

A polêmica comparação entre esports e esportes ressurgiu após as declarações de Ana Moser, que revoltaram a comunidade gamer brasileira. Astros como o streamer Alexandre “Gaules”, o jogador profissional de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO) Gabriel “FalleN” e o empresário e influenciador Bruno “Nobru” reagiram nas redes sociais.

“Esports” não consta no dicionário em português e é resultado da junção de duas palavras em inglês: “electronic” e “sports”, que significam “eletrônico” e “esportes”. O termo nasceu em 1988, primeiro chamado de “online sports game” (jogo esportivo online) pela revista norte-americana Wired, e depois evoluiu para “esports” em 1999, em um comunicado à imprensa sobre o lançamento da associação Online Gamers Association. Há duas décadas, portanto, que os esports estão ligados aos esportes na nomenclatura adotada pela comunidade de jogos eletrônicos competitivos.

Mas, antes de tudo, o que é esporte?

No dicionário Michaelis, “esporte” é assim definido:

  1. Prática metódica de exercícios físicos visando o lazer e o condicionamento do corpo e da saúde;
  2. O conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, que obedecem regras específicas e que são praticados individualmente ou em equipe;
  3. Cada uma dessas atividades; desporte, desporto.
  4. Atividade de lazer ou de divertimento; hobby, passatempo.

    A Lei Geral do Desporto do Brasil conceitua que o desporto brasileiro abrange práticas formais (reguladas por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto) e não-formais (liberdade lúdica de seus praticantes).

    Um artigo de Valdir José Barbanti, professor emérito da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), conceitua o esporte assim:

    — Esporte é uma atividade competitiva institucionalizada que envolve esforço físico vigoroso ou o uso de habilidades motoras relativamente complexas, por indivíduos, cuja participação é motivada por uma combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos — diz a definição, sendo que fatores intrínsecos são as motivações próprias do esporte, como o espírito esportivo, e os extrínsecos são aqueles para além do esporte, como o desejo de obtenção de dinheiro.

    O que dizem os especialistas

     

    A psicóloga Alessandra Dutra, que trabalha com esports e já integrou o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), acredita que os esports podem ser equiparados aos esportes tradicionais, embora admita que não haja consenso.

    — Existe uma discussão pelos especialistas sobre o que vem a ser esporte. Há aqueles mais conservadores que consideram esporte somente aquilo que vem de esforço físico. Mas há uma outra vertente que acredita que esporte também vem daquilo que há desgaste físico. Aqui entram games, xadrez, Fórmula 1, Stock Car. Esports têm regras, treinamento, entidades organizadas, campeonatos. Além disso, estamos na era da intersecção do desempenho com a saúde mental. Nos esports esse diálogo ocorre há muito tempo.

    — O preconceito vem porque a história com o entretenimento é muito forte. O que as pessoas precisam saber é que um viciado em game jamais chega ao nível profissional. Não suporta a rotina de um gamer profissional porque há algo de muito errado no comportamento dessa pessoa viciada. A rotina de um gamer profissional é pesada, completamente diferente de Ivete Sangalo na hora que vai desestressar — detalha a especialista, fazendo referência à comparação que a ministra Ana Moser fez de um atleta de esports com a cantora baiana.

    Claudio Godoi, presidente da Associação Brasileira de Psicologia dos Esportes Eletrônicos (ABRASPEE), também defende o entendimento de que esports são esportes:

    — O nível de execução física do jogador de esports é um fator diferencial no aspecto competitivo, porém diferente de um esporte tradicional. Nos esports, se dá pela coordenação motora fina majoritariamente. Os esports são categorias esportivas nas quais racicíonio, estratégia, velocidade, habilidade, destreza, controle emocional, processamento de várias informações ao mesmo tempo, comunicação e trabalho em equipe possuem papel fundamental. O atleta necessita estar em pleno funcionamento mental e físico para desempenhar.

    — É possível considerar os esports como misto de xadrez com automobilismo. É uma modalidade que entra no hall dos esportes intelectuais, cuja performance é mediada por um dispositivo eletrônico. No automobilismo, o dispositivo de mediação é mecânico, o carro.

    O professor Ary José Rocco Júnior, livre-docente de Gestão de Esporte na USP, considera a discussão complexa, pois há diferentes vertentes de entendimento sobre o que é esporte.

    — A questão sobre esports serem ou não esporte é bastante complexa. No século 20, conceitualmente falando, os esportes eram caracterizados por regras de disputa universalmente aceitas e por uma institucionalização, ou seja, precisava ter uma confederação ou uma federação que organizasse as competições e permitisse que pessoas dos mais diversos cantos do mundo pudessem praticar a modalidade em igualdade de condições. Portanto, a modalidade deveria fazer parte do sistema esportivo internacional, leia-se sistema olímpico. Obviamente, dentro desse conceito clássico, os esports estão fora.

    — Porém, dos anos 2000 para cá, o mundo vem mudando muito e, consequentemente, os esportes também. Você tem uma série de modalidades que estão fora do sistema olímpico. Hoje, a definição mais clara que se tem é que esporte é qualquer tipo de atividade organizada com regras universalmente conhecidas pelos seus participantes e que envolvam qualquer tipo de esforço e preparo físico e mental. Nesse sentido, esports se enquadrariam como esportes. Mesmo dentro da academia não existe um consenso a respeito disso, porque o mundo está se transformando. A inserção dos esportes eletrônicos dentro do sistema esportivo e olímpico, no conceito do século 20, eu tenho a impressão de que deve acontecer em questão de tempo.

    O doutor em Educação Física Leandro Carlos Mazzei, professor de Ciências do Esporte da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), elenca três perspectivas de análise dos esports:

    • — No âmbito da sociologia, é possível afirmar que o esport não é igual ao esporte. É uma coisa nova. É um fenômeno da sociedade pós-industrial. Existem coisas da nossa pós-modernidade que são novas: a tecnologia e o universo virtual. Como são novas, existe uma evolução das coisas antigas. Comparar esports com esporte tradicional talvez seja um equívoco sob o olhar filosófico. Esports e esportes são coisas diferentes, vividas por gerações diferentes.
    • — Sob olhar do esporte, em uma corrente de definições do esporte moderno, baseada em um caráter da sociedade industrial, é possível classificar os esports como esporte. São parecidos em várias definições do esporte moderno. Atletas de esportes tradicionais e eletrônicos têm rotinas bem semelhantes.
    • — O terceiro olhar é de políticas públicas. Há, no esporte tradicional, um problema muito grave de acessibilidade. Boa parte das escolas não tem instalações esportivas. Há esporte de alto rendimento muito bem desenvolvido no Brasil, mas não há um nível de participação esportiva muito grande. E aí o entendimento da Ana Moser é esse, apesar de ela talvez ter se comunicado mal, é de que haverá prioridade para essa acessibilidade à prática esportiva tradicional, voltada para a formação e a saúde do indivíduo. Provavelmente haverá um orçamento limitado e, se fosse colocar esports nesse guarda-chuva, teria problemas. O esporte eletrônico precisa de outras questões, que envolvem tecnologia e acessibilidade, mas em áreas diferentes. No esporte tradicional, a acessibilidade envolve espaço físico. No esporte eletrônico envolve condições tecnológicas, inclusive de acesso à internet.
    • O professor ainda destaca que os esportes eletrônicos têm o diferencial de não dependerem de confederações ou federações para os campeonatos existirem. No caso dos esports, são organizadoras de torneios independentes ou as próprias desenvolvedoras dos jogos que promovem os games, que, ao contrário dos esportes, representam propriedade intelectual de empresas privadas.

      — Nesse sentido, eu tenho lá minhas ressalvas se o poder público de fato precisa demandar investimento para o desenvolvimento do esporte eletrônico, já que ele se desenvolve por si próprio — avalia Leandro.

      Ele acrescenta que jogos eletrônicos já estão sendo reconhecidos por entidades olímpicas, mas observa que essa aceitação deve ser maior naquelas modalidades que têm ligação com os esportes tradicionais, como os simuladores de futebol e basquete, por exemplo.

      — Eu imagino que o esporte eletrônico vai ser mais facilmente reconhecido quando houver ligação com as modalidades esportivas tradicionais — opina o professor da Unicamp.

       

      O médico do Esporte Roberto Nahon, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte e ex-médico-chefe do COB, observa que a definição do que é ou não esporte é uma convenção social. Ele vê boas justificativas para as duas vertentes – de esport ser esporte ou não, tendo a atividade física como base de análise -, mas diz preferir a conceituação de que o esporte pressupõe treinamento para obtenção de uma performance, o que abrangeria os campeonatos de games.

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