“A manhã daquela sexta-feira ainda não tinha terminado quando o pesadelo começou. Aos poucos o silêncio da aldeia foi cortado por tiros vindos em nossa direção. Parecia um ataque de caçadores contra um bando de javalis”, assim o acadêmico da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) descreve o momento em que os policiais avançaram os limites imaginários da retomada Guapoy e chegaram até algumas casas de sapê. O confronto aconteceu há uma semana e deixou um indígena morto e policiais e outros índios feridos.
Ele é um dos moradores da Aldeia Amambai, que reúne mais de 10 mil indígenas e que não consegue apagar da memória a operação desencadeada pela equipe do Batalhão de Choque da Polícia Militar. “Quando a gente percebeu, os policiais já tinham rompido os limites imaginários entre a fazenda e retomada. A truculência era tanta que não havia espaço para nenhum tipo de questionamento”, lembra o estudante, que naquele dia ficou na retomada para fazer um trabalho solicitado por um dos professores.
“Já tinha ouvido falar da violência em algumas aldeias dos nossos parentes. Mas confesso que ainda não tinha sentido de perto o que ela representa na vida de uma comunidade inteira. Tive muito medo e muitos pensamentos ruins passaram pela minha cabeça. Achei que também ia morrer naquele momento principalmente quando ouviu o barulho do helicóptero sobrevoando sobre nossas casas”, conta uma professora que também testemunhou o confronto que terminou na morte de Vitor Fernandes.
Durante o velório, a viúva do indígena morto, com quem teve um filho, Assunciona Ximenes, de 36 anos, descreveu à reportagem o último contato com o marido, como se fosse uma despedida.
“Ele levantou cedo e disse que ia para a retomada lutar pelos nossos direitos. Olhou nos meus olhos disse que era para eu cuidar do caçula e não deixar que nada acontecesse com ele”, relata Assunciona com lágrimas nos olhos.
Ainda bastante abalada, entre algumas rezas feitas sobre o caixão do marido e abraços dos parentes presentes, ela disse ter sentido uma forte dor no coração no momento em que ele tombou em frente ao barracão da fazenda.
“Quero justiça para o meu marido e para todas as pessoas que foram feridas durante aquele ataque covarde”, afirma a viúva que disse que o sonho de Vitor era conseguir um barraco para a família. Durante o enterro ela chorou muito, entrou em desespero e tentou se jogar na cova do marido, mas foi contida.
Falta de respeito
As lembranças do dia 24 também estão presentes nos pensamentos de Araci Martins, de 46 anos. De uma só vez ela quase perde a filha Nathiely Martins, a nora e também um genro. Os três fazem parte da lista de feridos.
“Lembro do momento em que ela saiu de casa para ir até retomada fazer uma atividade do curso de Ciências Sociais da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) e não voltou. A última notícia que recebi é que ela tinha sido levada para um hospital de Dourados. Estive lá no Hospital da Vida e não me autorizaram visitá-la”, conta a mãe de Nathiely.
Dona Araci relata que no momento em que conseguiu entrar no quarto, não pode trocar nenhuma palavra com a filha porque ela estava dormindo. “Quando voltei no dia seguinte para vê-la novamente, uma enfermeira me disse que ela tinha recebido alta e que tinha sido levada presa pela polícia para a delegacia de Amambai. Achei essa decisão uma falta de respeito comigo e também um ato de violência com a minha própria filha”, desabafa.
As marcas da violência também continuam a martelar a cabeça de uma anciã que mora nas proximidades do local onde aconteceu a operação da tropa de choque da Polícia Militar. “Foi tudo muito rápido e intenso. Era gente correndo para todos os lados. No princípio achei que fosse uma brincadeira, porque tinha uns aviõezinhos [drones]. Mas não era. Me assustei quando fiquei sabendo que uma pessoa tinha morrido e que outras estavam ensanguentadas”, conta a moradora de 75 anos.
Crime de responsabilidade
Durante o sepultamento do indígena Vítor Fernandes, de 46 anos, que reuniu mais de 300 pessoas, além de críticas às operações desencadeadas na última sexta-feira (24), as lideranças do movimento também não pouparam o cacique da Aldeia Amambai, João Gauto.
Em conversa com algumas dessas lideranças que moram na Aldeia Amambai, a reportagem apurou que descontentamento contra o cacique é geral. Segundo eles, sua permanência no cargo é considerada ilegítima. “Sabemos que ele deu todas as informações para os policiais e também para os seguranças privados que estavam na fazenda”, disse uma das fontes.
Ainda de acordo com essas mesmas lideranças, passada a comoção do sepultamento de Vítor, serão tomadas as providências necessárias para que ele deixe o comando da aldeia. “Diante de tudo que aconteceu, se ele não renunciar, nós tomaremos as providências que forem necessárias para que ele seja afastado”, disse uma professora que trabalha na aldeia.
A reportagem também apurou que Gauto já trabalhou para o proprietário da Fazenda Bordas da Mata. Durante o velório, os indígenas empunhavam cartazes pedindo a prisão do cacique. “Ele tem que ser indiciado por crime de responsabilidade, uma vez que ele foi o pivô de todo esse conflito”, cobrou Avá Apyká Rendy, durante o velório.
“Não acoitamos traição”
O cacique é apontado pelos moradores da aldeia como traidor e também como uma pessoa rancorosa, que persegue quem contraria o seu jeito de pensar e também a suas ações. “Há algum tempo temos percebido que ele não se comporta mais como um dos nossos. Aqui na nossa comunidade nós não acoitamos nenhum tipo de traição”, diz um ancião da aldeia ouvido pela reportagem.
Antes do confronto que resultou na morte de Vítor e também no ferimento de outros envolvidos, o cacique teria enviado duas cartas às autoridades. A primeira delas é datada de 19 de junho, onde ele solicita apoio e diz que a retomada Guapo’y Mirim Tujury, “está tendo brigas entre os próprios indígenas”.
Na outra, já datada de 23 de junho, um dia antes do confronto, ele fez uma nova carta direcionada à Funai, MPF (Ministério Público Federal) e Sejusp (Secretaria de Estado e Segurança Pública), onde reitera as denúncias contra os indígenas da sua própria aldeia. “Informamos ainda que no local da retomada há muitos menores de idade correndo risco de vida, bêbados, e muitos aproveitam o conflito e andam com armas brancas, como facão […]”, relata o cacique.
Essas duas cartas deixaram a comunidade revoltada e a partir daí sua autoridade foi colocada em cheque. “Tudo isso é uma inverdade. Em nenhum momento nós fizemos qualquer intimidação ou ataque à sede da fazenda. Nós sempre agimos de forma pacífica. Quem inventou essa guerra foi nosso próprio cacique”, explica outra anciã da comunidade.
A reportagem procurou o cacique para falar a respeito das denúncias feitas por moradores e lideranças da Aldeia Amambai, mas ele não foi encontrado. Desde a última sexta-feira (24), após o confronto, ele não foi mais visto. Em nenhum momento ele esteve no local do velório.
Fonte: Jornal Midiamax