A insistência do petista Luiz Inácio Lula da Silva em dizer que seu governo vai priorizar a assistência social, e a demora do presidente eleito em anunciar sua política econômica e ministros da equipe têm perturbado o mercado financeiro e impactado negativamente a Bolsa e o dólar.
O cenário descrito acima se encaixa no período pós-vitória tanto em 2002, quando Lula foi eleito pela primeira vez para a Presidência, quanto hoje, 20 anos depois, ocasião em que o petista se prepara para assumir a chefia do Executivo federal pela terceira vez. Em 2002, como agora, o presidente eleito atormentou os operadores do mercado financeiro ao se negar a fornecer detalhes sobre seus planos econômicos.
Caso a estratégia de 20 anos atrás se repita, é possível que o país fique ainda algumas semanas sem conhecer a equipe do futuro governo. Em 2002, só em 10 de dezembro, quase um mês e meio após vencer o tucano José Serra no segundo turno da eleição presidencial, Lula começou a anunciar os nomes de seus ministros. A lista completa dos novos ocupantes da Esplanada dos Ministérios só foi informada aos brasileiros na antevéspera do Natal daquele ano, a pouco mais de uma semana para a posse.
Em 2002, um dos principais fatores para a demora foi a negociação de uma base aliada no Congresso, principalmente com o PMDB (hoje MDB). Além disso, havia uma disputa interna no PT pelo comando da área econômica entre futuros ministros: Antonio Palocci, Aloizio Mercadante e Guido Mantega. Dos três, apenas Palocci se encontra hoje totalmente apartado do círculo petista e sem qualquer chance de voltar.
Há 20 anos, porém, ele ganhou a queda de braço, coordenou a equipe de transição (cargo que hoje é do vice, Geraldo Alckmin) e assumiu o cargo de ministro da Fazenda. Seu nome agradou o mercado, que via no então prefeito de Ribeirão Preto a sinalização de que o governo Lula até poderia gastar muito em programas sociais, mas não abriria mão da responsabilidade fiscal – o que realmente aconteceu.
Processo de escolha
Prestigiado desde o início da transição em 2002, Palocci foi o primeiro nome a ser anunciado por Lula como integrante de seu futuro governo, em 18 de novembro daquele ano, mas sem que o cargo fosse anunciado.
A demora se prolongou por semanas, e as cobranças se intensificaram. Em 6 de dezembro daquele ano, o jornal Folha de S.Paulo trouxe o seguinte enunciado como sua principal manchete: “Indefinição do PT eleva dólar e risco – Demora de Lula em divulgar ministério inquieta mercado”. Veja este e outros registros da imprensa da época sobre a transição de FHC para Lula:
Em 10 de dezembro de 2002, Lula disse, em reunião com investidores durante viagem aos Estados Unidos, que a economia brasileira estava “na UTI” e , por isso, ele colocaria “um médico para ser ministro da Fazenda” – Palocci era médico de formação. Lula ainda tentou dizer que não havia confirmado, mas a mídia deu como certas duas escolhas: tanto de Palocci para a Fazenda, quanto de Marina Silva para o Meio Ambiente.
José Dirceu foi confirmado na Casa Civil em 12 de dezembro daquele ano. Henrique Meirelles foi anunciado presidente do Banco Central no mesmo dia; de novo, o mercado gostou. No dia seguinte, Celso Amorim foi designado para o Ministério das Relações Exteriores; os demais nomes foram liberados a conta-gotas. A divulgação do time completo ocorreu apenas em 23 de dezembro.
Cenário atual
Hoje, Alckmin cumpre um papel parecido com Palocci em 2002: de tentar acalmar o mercado e prometer responsabilidade fiscal após cada fala de Lula sobre demandas sociais. O vice, porém, não deve assumir um ministério. A falta de sinalizações sobre a equipe econômica tem enervado não só o mercado financeiro, mas também o mundo político.
O futuro governo quer a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição que garanta recursos para compromissos de campanha considerados prioritários, como a manutenção do Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família) em R$ 600 e a previsão de um reajuste acima da inflação para o salário mínimo no ano que vem.
No texto preparado pela transição, está prevista a retirada do Bolsa Família do teto de gastos, o que equivale a um gasto extra total de R$ 175 bilhões. A PEC propõe ainda que essa exclusão seja permanente, de forma a transformar o programa em uma política pública definitiva, com recursos garantidos.
Sem a indicação de nomes e de previsões de regras fiscais para cobrir as goteiras no teto de gastos, porém, a base do governo de Jair Bolsonaro (PL), que se comporta como oposição ao futuro governo, não quer deixar o texto avançar.
Apesar disso, não há indicações de que Lula esteja disposto a revelar, em um futuro próximo, a composição de sua equipe econômica. As especulações mais repetidas apontam para a possibilidade de o Ministério da Fazenda ser comandado pelo ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT). O nome de Haddad, porém, não empolga o mercado; se ele realmente for confirmado no cargo, Lula deverá designar um economista com visão mais liberal para comandar outro ministério da área econômica – como o do Planejamento, que será recriado.
Sem jantar em 2022
Embora haja muitas semelhanças entre as transições de governo em 2002 e 2022, há também uma diferença relevante: a relação entre os vencedores e os perdedores. Há 20 anos, o então presidente Fernando Henrique Cardoso era adversário político do PT e, nos últimos meses de governo, defendeu seu legado e reclamou das acusações de petistas, de que estaria deixando uma “herança maldita”.
Apesar disso, o tucano chamou Lula para uma reunião no Palácio do Planalto dois dias após o petista vencer o candidato tucano, José Serra. Duas semanas depois, em 17 de novembro, Lula e sua então esposa, Marisa Letícia, foram recebidos por FHC e Ruth Cardoso para um jantar no Palácio da Alvorada.
Em 2022, a relação entre Lula e Bolsonaro é inexistente. O candidato derrotado nem sequer parabenizou o vencedor do pleito e, desde a derrota, mantém-se recluso e calado. A atitude do mandatário alimenta bolsonaristas que, insatisfeitos com o resultado das urnas, reúnem-se nas portas de quartéis e pedem um golpe militar.
O protocolo de transição, porém, segue em trâmite; o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, coordena a parte da atual gestão.
Fonte: Metrópoles