Nos últimos dez anos, mais da metade (50,24%) das vítimas de estupro em Mato Grosso do Sul eram crianças de 0 a 11 anos. No total, 12.362 crianças do Estado tiveram a infância interrompida pela violência sexual entre 2016 e setembro de 2025.
O levantamento foi produzido com informações do Sigo Estatísticas, da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública). Os números são baseados em registros de boletins de ocorrência no Estado.
Três crianças morreram após o estupro neste período. As violências sofridas por algumas dessas vítimas ganharam repercussão, como Sophia de Jesus Ocampo – menina de 2 aninhos torturada, estuprada e assassinada em 2023 – e Emanuelly Victória de Souza – com 6 anos, violentada e morta em agosto de 2025. Porém, somente após a morte delas.
Outras, entre as mais de 16 mil crianças vítimas de crimes violentos intencionais no Estado nos últimos 10 anos, segundo o levantamento, sofreram e morreram sem visibilidade. Algumas famílias, inclusive, esperam até hoje soluções e justiça.
Tudo isso revela que a agonia que tirou ou prejudicou para sempre a vida de crianças do Estado foi silenciosa, ou silenciada, e nenhum dos atores responsáveis pelo dever de proteger os menores – segundo o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), família, sociedade e Estado – foram capazes de impedir finais trágicos.
Números da violência
Ainda sobre estupros, um terço das pessoas violentadas eram adolescentes (12 a 17 anos). Somando, 83,57% das pessoas estupradas desde 2016 em Mato Grosso do Sul são menores de idade. No total, foram 24.606 vítimas, sendo 20.564 até 17 anos.
Em 2025, até o fim de setembro, 1.556 pessoas foram estupradas no Estado. Dessas, 45,31% são crianças, ou seja, 705 pequeninos. No ano passado, foram 2.651 vítimas no total e 1.224 menores de 11 anos, o que representa 46,17%.
Além disso, segundo as estatísticas do Sigo, 16 crianças de MS sofreram maus-tratos que levaram à morte nestes dez anos. Há ocorrências em 2016 (1), 2018 (4), 2019 (1), 2020 (2), 2022 (1), 2023 (4) e até o fim de setembro deste ano mais 3 crianças foram mortas e maltratadas.
Quando o assunto é violência doméstica, as crianças representam 3.329 vítimas, do total de 211.429 nestes últimos dez anos. No entanto, mesmo não tendo recebido agressões diretas, os pequenos sofrem diariamente ao assistir às mães sendo agredidas dentro de casa.
“Alarmante”
O Promotor de Justiça Oscar de Almeida Bessa Filho analisa que os dados são alarmantes. “Reforça nossa responsabilidade de atuar firmemente na construção da rede de proteção e na diminuição desses índices”, afirma o profissional, que atua em casos relacionados à violência contra crianças e adolescentes.
Porém, ele observa uma melhora – vale dizer, sutil – nos números de violência sexual contra menores.
“Em 2023, Campo Grande estava entre as 50 cidades com mais de 100 mil habitantes com maior número de estupros, inclusive de vulneráveis. Em 2024, já não aparecemos mais entre essas 50 cidades”.
Para o promotor, isso se deve ao trabalho de fortalecimento da rede, à criação de um comitê de gestão, melhora no fluxo de atendimento e criação de novos conselhos tutelares. “Foi um avanço, embora ainda haja muito a construir”, conclui.
Confira a evolução no número de estupros de crianças entre 0 e 11 anos, nos últimos dez anos, segundo levantamento com dados do Sigo:
- 2016 – 1179
- 2017 – 1288
- 2018 – 1380
- 2019 – 1416
- 2020 – 1317
- 2021 – 1136
- 2022 – 1267
- 2023 – 1450
- 2024 – 1224
- 2025 – 705 (até setembro)
Morta por ser mulher
Com apenas 10 meses, Sophie Eugênia Borges tinha dado os primeiros passos dez dias antes de ser assassinada, junto com a mãe, pelo próprio genitor. Na delegacia, João Augusto de Almeida tentou justificar o injustificável dizendo que “estava em surto”.
Ele disse ainda que não queria “sustentar duas mulheres”, apesar de ter negado que este fosse o motivo do crime. Mesmo assim, está preso e é considerado feminicida com duas vítimas: a filha e a mulher com quem gerou o bebê. Ou seja, antes mesmo de se entender no mundo uma pessoa do gênero feminino, a misoginia e o ódio às mulheres tiraram a vida de Sophie.
Nos últimos dez anos, segundo dados do Sigo, mais sete crianças morreram vítimas de feminicídio em Mato Grosso do Sul. Em 2018, foram três, duas em 2020 e mais uma em cada um dos dois próximos anos. No total, o Estado acumula 343 mortes por feminicídio desde 2016.
Negros e meninas são principais alvos
Em 2023, segundo o CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente), com dados cadastrados no Sipia (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência), 4.568 crianças de Campo Grande tiveram seus direitos violados de alguma forma. Dessas, 1.188 eram pardas, 532 brancas, 80 pretas, 40 indígenas e 6 amarelas. No entanto, conselheiros deixaram de informar a cor ou raça da maioria das vítimas (2.722).
Já em 2024, o número total cresceu para 5.676. Ou seja, as denúncias de violação de direitos de crianças subiram 25% em um ano. Novamente, não há informações sobre a raça de seis em cada dez dessas vítimas. Mesmo assim, crianças pretas ou pardas são maioria (1.529), seguidas de brancas (639), indígenas (10) e amarelas (4).
No recorte de gênero, meninas são as principais vítimas. Em 2023, elas foram 54% e 53% no ano seguinte. Logo, crianças do sexo masculino correspondem a 44,8% e 46%, respectivamente. Em 2023, 0,12% eram pessoas trans masculinos ou femininos. Já em 2024, esse público representa 0,14% e 0,31% não tiverem o gênero informado.
Aero Rancho lidera violência
Entre os bairros de Campo Grande, os mais populosos registram maior número de denúncias. Além disso, regiões consideradas mais periféricas da Capital também têm número maior de violações a direitos de crianças e adolescentes.
No ano de 2023, segundo o CMDCA, o Aero Rancho liderou as notificações, com 176 denúncias. Porém, no ano seguinte, o número cresceu 139%, chegando a 421 crianças com direitos violados no bairro. Em segundo lugar no ranking de 2023, está o Jardim Noroeste, com 166, seguido de Nova Lima (164) e Jardim Los Angeles (94).
Já em 2024, o Tiradentes passou de 8° para 2° bairro com mais violações de direitos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). No total, foram 74 no primeiro ano e 161 no segundo, um aumento de 117%. Depois, aparecem o Nova Lima (144), Itamaracá (141), Noroeste (129), São Conrado (124) e Pioneiros (106).
Mais uma vez, não há dados de 2025. Vale lembrar que movimentações no número de denúncias não necessariamente significam mais crianças em situação de vulnerabilidade, já que nem todos os casos são notificados. Ou seja, é possível que, de um ano para outro, tenha aumentando o número de notificações e registro, mas não o de violações.
Faltam dados sobre agentes e principais violações
Os dados obtidos no Sipia pelo CMDCA revelam mais uma omissão de informações importantes no que se refere aos agentes violadores de direitos de crianças e adolescentes. Em 2024, a maioria das violações (38%) foi causada por “pessoa física”, sem qualquer especificação de quem são essas pessoas. “Outro”, também sem mais informações, corresponde a 8%.
Entre os agentes de fato identificados as mães lideram, com 21% das violações. Pai e padrasto somam apenas 6,6%. Avós, 0,5%; e tio ou tia, 0,02%. A mesma porcentagem vale para agente violador registrado apenas como “responsável”. As instituições de ensino são responsáveis por 1,5% das violações. Além disso, outras crianças respondem por 10% e outros adolescentes por 8,7%.
O CMDCA não enviou dados sobre os agentes referentes a 2025. Já na planilha de 2023, as informações não parecem válidas: apenas 4 agentes violadores, todos categorizados como “outros”. Com relação às violações, o CMDCA disponibilizou apenas informações de 2023. Ou seja, sem dados referentes a 2024 e 2025, mais recentes.
Naquele ano, 56% das violações são relativas ao direito de convivência familiar e comunitária. Depois, liberdade, respeito e dignidade com 22%; 12% para educação, cultura, esporte e lazer; 8,3% para direito à vida e à saúde; e 0,56% para profissionalização e proteção no trabalho.
O perigo está em casa
Mesmo sem dados expressivos e relevantes sobre agentes causadores de violência por parte do CMDCA, quem trabalha no combate a esses crimes, na prática, percebe um padrão.
“Em sua maioria, os agressores são familiares, como padrastos e tios. A grande parte da violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre no ambiente familiar, porque há proximidade”, afirma o Promotor de Justiça Oscar de Almeida Bessa Filho.
Ele ressalta, ainda, que a maioria das violências – sexual ou física – ocorre onde a criança deveria estar mais protegida: em casa.
“E, pior, o agressor muitas vezes é um familiar. Por isso, é importante que os órgãos de saúde, educação e o Conselho Tutelar estejam afinados em uma política pública garantista, para prevenir e coibir essas violências, garantindo medidas protetivas e salvaguardas por parte do Estado”, conclui.
O que diz o CMDCA?
O CMDCA não enviou dados referentes a 2025, apenas a totalização dos dois anos anteriores. À reportagem, o Conselho reforça “que as estatísticas foram extraídas do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA), que é e deve ser constantemente atualizado pelos Conselheiros e Conselheiras Tutelares e demais integrantes da Rede de Atendimento que possui acesso e que também possui a função de atualizar”.
Porém, as informações enviadas evidenciam que ainda há dados desencontrados e com informações insuficientes para, de fato, diagnosticar o sistema de proteção às crianças. O Promotor de Justiça Oscar de Almeida Bessa Filho alerta que o problema pode ser estrutural. “Muitas vezes, não há pessoal suficiente para registrar denúncias no sistema SIPIA”, explica.
O Jornal Midiamax perguntou ao representante do CMDCA quais são os principais gargalos da rede de proteção às crianças em MS, se há problemas estruturais e o que seria necessário para ampliar a efetividade dos Conselhos Tutelares, além do porquê não há divulgação ou suporte para consulta de dados sobre a atuação dessas instituições. No entanto, não houve resposta até o fechamento desta matéria.
Direitos não faltam
Em teoria, o ECA e a Constituição de 1988 protegem as crianças e os adolescentes de todos os tipos de violência. Eles têm os direitos assegurados, mas nem sempre são respeitados na prática. Entre eles, direito à vida, à saúde, à convivência familiar, ao lazer e à educação. “Outro dia, uma criança me perguntou: ‘Qual é o mais importante?’ Todos são importantes”, ressalta o Promotor de Justiça Oscar de Almeida Bessa Filho.
Ele é titular da 54ª Promotoria de Justiça de Campo e atua em casos que tramitam na vara de infância e juventude. Na opinião de Oscar Bessa Filho, faltam políticas públicas para que o sistema de proteção aos menores funcione efetivamente. “Os órgãos de defesa, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e a OAB, devem estar envolvidos nessas questões”.
O Ministério Público atua para em fiscalização e articulação com outros órgãos deste sistema, como o Conselho Municipal de Direitos, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, o Conselho Tutelar e a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), segundo o promotor. Ele afirma que qualquer melhoria na situação de crianças e adolescentes só virá com atuação em conjunto.
Conselho tutelar tenta, mas falta estrutura
Ainda na opinião do Promotor de Justiça Oscar de Almeida Bessa Filho, os Conselhos Tutelares tentam ajudar a garantir direitos e evitar maus-tratos contra crianças e adolescentes, mas não há estrutura suficiente para possibilitar resultados mais efetivos.
“Na maioria dos casos, os conselheiros são pessoas comprometidas, atuam com zelo e dedicação. Mas ainda existem gargalos a serem corrigidos pelas políticas públicas e pela gestão municipal, falta estrutura, equipes técnicas e servidores nos conselhos tutelares. Também faltam melhorias nos equipamentos que atendem os conselheiros, como CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social)”, conclui.
Por outro lado, ele ressalta que, aos poucos, há avanços no sistema de proteção.
“Desde 2024, com a criação de três novos conselhos, em 2025 aprovamos a Deliberação nº 1.029, que cria o fluxo de atendimento. Assim, a criança não é revitimizada: ela é ouvida uma ou, no máximo, duas vezes”.
Antes, crianças eram encaminhadas da escola diretamente para o Conselho Tutelar quando havia indícios de violências. Agora, precisa ter uma equipe técnica que faça escuta especializada para proteger crianças e garantir encaminhamento adequado. Inclusive, eventuais desvios ou omissões de instituições como escolas, Conselho Tutelar ou sistema de saúde, podem ser punidos.
Como denunciar?
Há diversos caminhos para denunciar violências contra crianças e adolescentes.
- Se houver situação de grave perigo e emergência, acione a Polícia Militar pelo 190;
- Em caso de suspeitas de maus-tratos, é possível denunciar à ouvidoria do Ministério Público, à Defensoria Publica ou ao Disque 100.
Cada região tem um Conselho Tutelar específico. Confira os telefones:
- Sul: 67 9 9941-2195
- Norte: 67 9.9688-1623
- Centro: 67 9 9715-9024
- Bandeira: 67 9 9989-3692
- Anhanduizinho: 67 9 9862-4795
- Prosa: 67 9 9687-4030
- Imbirussu: 67 9 9669-3937
- Lagoa: 67 9 9847-9119
Fonte: Jornal Midiamax