Por vezes ‘mascarado’ pelas estatísticas de estupro de vulnerável, o crime de exploração sexual infantil ainda faz inúmeras vítimas todo ano em Mato Grosso do Sul. São crianças e adolescentes que têm suas histórias de vida marcadas pela vantagem e lucro ilícitos tirados de forma tão precoce, às custas da violência que fere a dignidade. Longe do imaginário de que esse tipo de crime acontece apenas em ‘casas de prostituição’, os responsáveis muitas vezes são os próprios pais, que enxergam nos filhos uma forma de lucro.
Dados da Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública) apontam que foram registrados 15 casos de exploração sexual infantil de janeiro até outubro de 2022. A idade das vítimas varia entre 11 e 16 anos, e as cidades com maior número de registros foi Campo Grande, com 5, seguida de Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai (3), Terenos (2), e Jardim, Bonito, Três Lagoas, Coxim e Tacuru, com um caso cada.
Segundo explicado pela delegada Anne Karine Trevizan, titular da Depca (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente), cidades turísticas estão sujeitas a terem casos registrados – como Bonito e Jardim. “Cidades onde têm pontos turísticos acabam se aproveitando mais do fluxo de pessoas”, explica.
Favorecimento à prostituição
Segundo a delegada, foram registrados cinco boletins de ocorrência de favorecimento à prostituição em 2022 em Campo Grande. O crime está previsto no artigo 218 do Código Penal e a pena é de quatro a dez anos.
A pessoa que comete o crime também pode pagar multa caso seja constatado o agravante de obtenção de vantagem econômica sob o menor. Anne explica que, muitas vezes, o crime não é registrado nessa tipificação penal e sim como estupro de vulnerável, pois na maioria das vezes é comprovada a conjunção carnal.
“Se a vítima for menor de 14 anos é enquadrado como estupro de vulnerável, e o autor responde por favorecimento à prostituição. Já se a vítima tiver entre 14 e 18 anos, o autor responde por submeter, induzir ou atrair à prostituição, no artigo 218-B”, detalha Anne.
A delegada ainda reforça que o fato da vítima “aceitar” se prostituir é irrelevante para a aplicação da pena e prisão, sendo a pessoa que praticou punida da mesma forma. O artigo 218-B do CP define que o crime é enquadrado como “submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone”.
Criança como lucro
A delegada explica que condições socioeconômicas, como baixa renda familiar, podem agravar os casos de exploração sexual infantil. “Algumas famílias veem a criança como forma de lucro”, afirma. O crime é hediondo e a Depca recebe denúncias tanto de registros de boletim de ocorrência como anônimas através do Disque 100.
“A criança é ouvida em depoimento especial. Se [a autoria] for pai ou mãe, é tirado do convívio e ela para de frequentar aquela casa, ou até estabelecimento. Nossas equipes vão até os locais e verificam se têm mais crianças ou adolescentes na mesma situação”, informa Anne.
Um dos registros feitos pela Depca foi durante a Operação Sentinela, em setembro, em que uma mulher foi presa por agenciar uma adolescente. A autora possuía uma casa de prostituição e a menor era “agenciada” através de um site. No local, foram encontradas outras vítimas, mas apenas uma menor de 18 anos.
À época, as duas filhas da suspeita foram ouvidas em depoimento especial, mas negaram qualquer tipo de abuso. A mulher tirava foto das jovens para enviar aos “clientes” e recebia parte do valor dos programas, entre R$ 150 e R$ 120 por meia hora.
Apoio às vítimas
Conforme explicado pela assistente social e idealizadora do projeto Movimento Mãe Águia, Daniela Duarte, 85% dos casos de abusos sexuais são cometidos no âmbito familiar. “Em primeiro lugar estão o pai e o padrasto, em seguida avôs, primos, irmãos e tios”, explica. O Mãe Águia recebe crianças e adolescentes encaminhados do SGD (Sistema de Garantia de Direitos), que inclui a Vara da Infância, Promotoria da Infância, conselhos tutelares das cinco regiões de Campo Grande e de escolas.
O objetivo da organização é prestar atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e às mulheres em situação de violência doméstica. As vítimas também passam por atendimento personalizado com psicanalista.
Uma das principais dificuldades enfrentadas pelas crianças atendidas, segundo Daniela, é a falta de vale-transporte e dificuldades socioeconômicas que dificultam a participação e atendimento. “A maioria das mulheres são chefes de família, diaristas, domésticas ou empreendedoras no ramo de venda de linha estética, e em relação às crianças há pouco investimento de políticas públicas voltadas a elas. A não participação no contra-turno escolar favorece o envolvimento com álcool e outras drogas”, relata Daniela.
A assistente social e idealizadora do Mãe Águia ainda explica que, caso seja identificada que alguma criança tenha sido vítima de exploração sexual infantil, o projeto ajuda a dar encaminhamento para os órgãos do setor público que a criança deve passar, mas também recebe as vítimas.
“Se precisar de tratamento, como psicoterapia personalizada, e atendimento com a assistente social em nossa instituição, deve ser solicitado um encaminhamento por escrito por algum órgão. Geralmente para nós as crianças já chegam do Conselho Tutelar, promotoria do Ministério Público ou Vara da Infância”, explica.
Daniela ainda reforça a importância das denúncias, quando identificadas vítimas de exploração sexual, seja no ambiente familiar, por parte das escolas ou outras pessoas de convívio, como vizinhos, por exemplo. “Deve ser feita a denúncia imediatamente ao Conselho Tutelar, que inclusive faz plantão, ou na Depca”, finaliza.
Projetos do Movimento Mãe Água
Ao todo, são seis projetos na instituição, que incluem desde oficinas individuais e cursos de capacitação, até atividades que estimulem o convívio familiar com a criança. Entre eles, estão o projeto “protagonismo juvenil”, que estimula crianças e adolescentes a construírem um projeto de vida através de capacitações de diversas temáticas; o “oficin’art”, que promove atividades lúdicas e de artes plásticas; o “grupo de famílias”, que semanalmente estimula o fortalecimento de vínculos afetivos e comunitários através do contato das crianças atendidas com as pessoas de sua casa e bairro.
Além destes, o “grupo de gestantes” une mulheres grávidas para compartilhamento de experiências vividas na UBSF (Unidade Básica de Saúde da Família) Mário Covas; o “tecendo conhecimentos em rede” leva informações sobre como identificar e denunciar situações de violência sexual contra crianças e adolescentes; e o “Movimento Mãe Águia volta às escolas” percorre escolas públicas promovendo ações de prevenção e identificação de violência sexual para educadores, alunos e famílias.
O projeto já atendeu mais de 250 vítimas de abuso sexual e conta com assistentes sociais, pedagogas, advogadas, professores, psicanalistas e até contador, entre seus profissionais parceiros, todos voluntários. As crianças podem ser encaminhadas de diferentes redes de proteção, incluindo Caps (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil) e Defensoria Pública, além dos órgãos já citados.
Confira a lista de telefones das unidades:
33ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Campo Grande – (67) 3313-4620
Caps IJ (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil) – (67) 3314-6337
Conselho Tutelar Região Norte – (67) 3314-6366 ou 3314-6371
Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso – (67) 3317-3428
Depca (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente) – (67) 3323-2500
Conselho Tutelar Região Sul – (67) 3314-6367 ou 3314-6370
Conselho Tutelar Região Centro – (67) 3314-4337 ou 3313-5027
Defensoria Pública do Estado de MS – (67) 3313-5959
Fonte: Jornal Midiamax