Uma liminar do TRF-3 (Tribunal Federal da 3ª Região) concedeu liberdade para os nove indígenas presos há mais de 20 dias na PED (Penitenciária Estadual de Dourados). A medida atende pedido de habeas corpus impetrado pela DPU (Defensoria Pública da União) e mais quatro entidades.
“Os pacientes são indígenas e, ao que tudo indica, em vias de integração (Lei nº 6.001/73, art. 3º, I, e art. 4º, II). As terras tradicionalmente por eles ocupadas constituem parte integrante de sua identidade e a sua proteção tem status constitucional, sendo inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis, cabendo-lhes a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (CF, art. 231)”, diz um dos trechos apresentados pela defesa.
Segundo a Justiça Federal, os envolvidos terão, entretanto, “que comparecer de forma bimestral ao juízo de origem, para informar e justificar suas atividades (CPP, art. 319, I), devendo os pacientes, em decorrência, fornecer o seu endereço eletrônico (e-mail) e o seu número de telefone celular (para que possa ser contatado por meio de aplicativo – WhatsApp – quando necessário), bem como comunicar imediatamente ao juízo impetrado qualquer alteração”.
Ao decidir pela libertação dos indígenas, o desembargador ressaltou a necessidade de cumprimento de medidas semelhantes a maioria dos envolvidos, como proibição de retorno ao local dos fatos investigados (art. 319, II, do CPP) e de se ausentar da cidade. Por outro lado, o ex-candidato ao Governo do Estado pelo PCO (Partido da Causa Operária), Magno de Souza, terá que cumprir monitoramento eletrônico.
“Para que não se alegue desconhecimento, ressalto que a inobservância de qualquer das medidas ora fixadas, bem como o não comparecimento dos pacientes perante o juízo de origem para firmar o necessário termo de compromisso, poderá implicar novo decreto de prisão preventiva, nos termos do art. 282, § 4º, do Código de Processo Penal”.
Esposas denunciaram maus-tratos
Esposas de indígenas presos após desocupação de área reivindicada como tradicional denunciaram maus-tratos. Também há relatos de que algumas provas usadas no flagrante teriam sido forjadas. Levados pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar, 9 deles cumpriam prisão preventiva na PED (Penitenciária Estadual de Dourados).
“Essas armas que a Polícia Militar fala que foram encontradas com nossos patrícios não eram deles. Trouxeram para incriminar a gente, para justificar uma prisão injusta”, comenta uma liderança acampada na retomada Yvu Verá.
No entendimento do indígena, a polícia não teria usado a verdade no dia em que esteve na área reivindicada pela comunidade e também pela empresa que iniciou a construção do muro do condomínio. “Onde que nós indígenas vamos ter dinheiro para comprar uma arma daquelas lá?”, questiona.
“Eles usaram mentira para levar os patrícios lá na delegacia. Será que polícia pode fazer isso? Pra mim isso é um crime. (…) Falaram vamos lá na delegacia assinar uns papéis aí vocês voltam. Mas eles não voltaram. Tão lá preso até hoje. E nós queremos eles soltos porque não devem nada”, relata a liderança, ressaltando que alguns dos presos pertenciam a outra retomada.
Segundo relato de Dona Rosalina, o marido estava indo para o trabalho e apenas passava pelo local, quando foi levado para a Depac (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário). “Ele me contou que está sofrendo muito com o frio, que não tem casaco para vestir e está descalço”, conta a esposa. O casal tem seis filhos. Dois deles ainda são pequenos, com dois e quatro anos.
“Eles estão passando frio e com fome. Estão recebendo comida crua, arroz cru, feijão. Eles não têm coberta e dormem no chão frio, sem colchão e sem nada”, relata Sandra, outra mulher acampada na retomada. Ela é esposa de um cacique que também está em uma cela da PED.
“Quero meu marido de volta. O que fizeram com ele é uma grande injustiça. Nós apenas estamos reivindicando o que é nosso. Tenho dois filhos pequenos que pedem pela presença do pai. Além disso, nossa família está sofrendo ameaças de jagunços de outras propriedades que estão rondando nossos barracos. Estamos todos com muito medo”, diz a indígena de 24 anos, esposa de um dos presos.
Segundo outra indígena que pediu para não ser identificada, além das crianças, com ela também moram mais quatro irmãs e dois idosos. Um deles de quase 120 anos. “Se acontecer algum ataque, não temos para onde correr e nem eles teriam condições físicas para isso. Quem anda armado são eles”, comenta a esposa de um dos detidos, com lágrimas nos olhos.
Entre os nove indígenas que estão na PED, por força de prisão preventiva, está o ex-candidato ao governo de Mato Grosso do Sul, Magno de Souza (PCO). Pedidos judiciais para libertar o grupo tramitam na Justiça Federal e até no STF (Supremo Tribunal Federal).
Desmandos da Sejusp
Além desse pedido, também tramita no STF ação que tenta barrar os ‘desmandos’ da Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública de MS) ao, supostamente, dar ordem direta para a Polícia Militar intervir em ocupações indígenas em Mato Grosso do Sul.
A reportagem do Midiamax entrou em contato com a Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário), ainda na sexta-feira (21), sendo informada que “a refeição servida é oferecida por empresa terceirizada, feita na cozinha presídio, com mão de obra dos próprios internos, que cozinham”.
Com relação aos colchões e cobertores, no momento da inclusão já é fornecido ao interno, ou pode ser levado pela família, caso ele prefira. No caso dos indígenas internados na PED, existe um projeto em conjunto com o Judiciário e Ministério Público de garantia de assistência material, reforçando ainda mais o que já é fornecido pela unidade prisional.
Em relação aos procedimentos que teriam sido utilizados pela Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, a Secretaria de Justiça disse que “o trabalho da segurança foi feito e o flagrante convertido em prisão preventiva”.
A DPU (Defensoria Pública da União) e mais quatro órgãos, entre eles a Funai (Fundação Nacional do Índio), ingressaram no dia 13 de abril na Justiça com habeas corpus pedindo a libertação dos 9 indígenas presos em Dourados. No pedido protocolado no TRF3 (Tribunal Federal da 3ª Região), os órgãos acusam a Secretaria de Justiça de Mato Grosso do Sul de dar ordem direta para atuação da Polícia Militar em desocupação de área indígena. Entre os detidos está o ex-candidato ao Governo de Mato Grosso do Sul nas eleições de 2022, Magno de Souza (PCO).
A ação do Batalhão de Choque, a tropa de elite da Polícia Militar, que terminou na prisão, aconteceu durante desocupação de uma área nos limites de terra reivindicada como território indígena, mas onde empresa Corpal Incorporações e Construções iniciou obras de um empreendimento de luxo.
“Importante destacar que a determinação do Sr. Secretário foi dada à revelia de ordem judicial em ação de reintegração de posse, dado que a utilização de forças policiais para a realização de despejos coletivos de comunidades indígenas tem sido prática indevida repetidamente feita em Mato Grosso do Sul”, argumenta a DPU no pedido de liberdade, em caráter liminar, documento a que o Midiamax teve acesso. O secretário a que a Defensoria da União se refere é Antonio Carlos Videira, titular da Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública).
Na representação protocolada no TRF-3, as entidades ressaltam que há reincidência na decisão de desocupação e que representam afronta aos direitos humanos. “Note-se que ação idêntica perpetrada recentemente pelo Batalhão de Choque da PMMS foi objeto de medida cautelar concedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) (Resolução n. 50/2022, doc. em anexo) que expressamente observou em relação ao Brasil”.
Ainda de acordo com o pedido entregue à Justiça Federal, as entidades alegam que casos como o da comunidade Yvu Verá e também da retomada Guapoy Mirin Tujury, em Amambai, que terminou com morte de um indígena no ano passado, representam perseguição do Governo do Estado contra indígenas.
“Trazem à tona o lúgubre panorama da violência perpetrada contra as comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul, revelando um padrão de comportamento estatal que não pode ser interpretado como uma atuação isolada e eventual”.
A DPU também relata que os indígenas foram conduzidos até à Polícia Civil e durante a prisão em flagrante foram imputados a eles os crimes de esbulho possessório, dano, associação criminosa e posse ou porte ilegal de arma de fogo. Os órgãos criticam o fato de todos os crimes terem sido imputados a todos os nove indígenas presos sem distinção, ou seja, sem detalhar a ação de cada um no suposto crime.
Sejusp diz que cumpriu ‘dever legal’
A imprensa questionou o Governo do Estado e a Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), por meio da assessoria de imprensa, a respeito das acusações dos cinco órgãos.
Em resposta, a Sejusp informou que agiu no “estrito cumprimento do dever legal, para a preservação da ordem pública e da vida, uma vez que no local uma vítima, indígena, foi agredida com golpes de facão e ameaçada de morte com arma de fogo pelos acusados, que além da Lesão Corporal Dolosa e Ameaça a esta pessoa, cometeram ainda os crimes de Dano, Associação Criminosa, Esbulho Possessório – se o Agente Usa de Violência e, Posse ou Porte Ilegal de Arma de Fogo de Uso Restrito, uma vez que foi apreendida no local uma pistola adaptada para calibre 22 por eles utilizada”.
A secretaria também informou que “todos os acusados reconhecidos pela vítima foram presos e autuados em flagrante delito pelos crimes acima mencionados, sendo a prisão convertida em preventiva pela Justiça Federal, o que comprova a legalidade e necessidade da ação policial”.
A respeito da perseguição denunciada pelos órgãos de proteção aos indígenas e ordem direta dada pelo secretário à tropa de elite da PM, a Sejusp não se manifestou.
A reportagem também tentou contato telefônico com Carlos Videira, mas as ligações não foram atendidas. As tentativas de contato foram devidamente registradas e o espaço segue aberto para manifestação.
Acionado pela reportagem, o governo de Mato Grosso do Sul enviou nota da Sejusp, reiterando que agiu “no estrito cumprimento do dever legal”.
Equívocos jurídicos
No pedido de liberdade, os órgãos também detalham que o caso foi encaminhado à Justiça Federal em razão da federalização gerada pela área estar sob processo de demarcação como território indígena. No entanto, a DPU afirma que a liberdade dos indígenas poderia ter sido inicialmente analisada, em caráter liminar, pela Justiça Estadual.
“Nesse cenário, caberia ao Juízo Federal o imediato relaxamento do flagrante, até porque os indígenas estavam detidos desde o dia 8 de abril de 2023, sem que tenha lhes tivesse sido oportunizada a análise da (i)legalidade de suas prisões. Não obstante as razões suficientes para o relaxamento da prisão, a autoridade nominada coatora decretou a prisão preventiva”.
Além da DPU e da Funai, o pedido de libertação dos indígenas é assinado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Observatório de Justiça Criminal e Povos Indígenas e também pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul.
Despejos forçados
Em nota divulgada nesta quinta-feira (13), as entidades sustentam que “não há motivos concretos para a manutenção dos indígenas na prisão, uma vez que a prática dos delitos atribuídos a eles pela Polícia Militar ainda será objeto de questionamentos da DPU durante o inquérito policial, sendo frágeis os elementos colhidos até o presente momento sobre a participação deles em atos criminosos”.
As entidades também argumentam que o Poder Judiciário deve levar em consideração a gravidade das “ações violentas endereçadas à população indígena em Mato Grosso do Sul e os despejos forçados realizados pela Polícia Militar, condutas que já foram denunciadas ao Conselho Nacional e às Cortes Internacionais de Direitos Humanos”.
“[…] os indígenas reivindicam o território de Yvu Vera, há anos, sendo grave a tentativa de criminalização da comunidade que apenas protestava por seus direitos”, conclui a nota das cinco entidades que entraram com representação no Tribunal Regional Federal.
As acusações feitas no pedido de defesa dos indígenas reverberam na própria comunidade. Lideranças indígenas disseram ao Jornal Midiamax, nesta semana, que atuação da Sejusp teria sido feita em ordem direta à PM para intervir no caso.
O direcionamento da secretaria para tropa de elite da PM, o Batalhão de Choque, atuar na retirada dos indígenas, suspeitam lideranças, seria reflexo de pedido direto feito por interessados na construção.
Fonte: Jornal Midiamax